Figuras de retórica (visual)

Há muitas maneiras de classificar as figuras retóricas, vindas dos modelos verbais ou já considerando o uso de imagens. Algumas referências relevantes nisso são Bonsiepe (2010 [1965]), Durand (1970), Ehses e Lupton (1988) e Philips e McQuarrie (2004), que analisaram e propuseram classificações em relação ao uso de figuras retóricas na publicidade. Confesso que a verve taxonômica que segue entranhada nesse assunto sempre me afastou dele. Por mais que seja divertido ficar identificando e encaixando cada caso na imensa lista de figuras, eu nunca vi muita utilidade em definir se algo é um esquema ou um tropo, ou quais as diferenças entre figuras verbo-pictoriais e figuras verbais e visuais.

Foi apenas ao me libertar das amarras taxonômicas e me concentrar nas estratégias de comunicação — ou seja, como o uso dessa ou daquela figura ajuda a comunicar algo — é que passei ver sentido em usar figuras de retórica como critério de análise visual. Aqui, a classificação é uma base para entender estratégias retóricas, e não um objetivo. Compreendendo como cada figura funciona, podemos identificar os recursos utilizados para construir a retórica visual.

Vejamos o pleonasmo, a figura baseada na redundância, onde elementos que têm o mesmo significado se repetem —sair para fora, subir para cima. Como isso se dá visualmente? Um anúncio de telefone celular com o título “Dual Sim, dois chips no mesmo telefone” e a imagem mostrando um celular e dois chips ao seu lado. Um comercial com a frase “Coca-Cola com amor” e imagens de um casal se olhando apaixonadamente e dividindo a mesma garrafa de refrigerante. Um gráfico com o título “Metade dos moradores aprova a gestão atual” e um círculo dividido em duas partes iguais acompanhadas das anotações “aprovam: 50%, desaprovam: 50%”. A campanha clássica da agência americana DDB, no final dos anos 1950, para o Fusca, com o título “Think small.” (Pense pequeno.) e a imagem de um fusquinha distante, em um campo vazio. O pleonasmo reforça uma ideia, deixando a mensagem mais explícita.

publicidade samsung dual sim "dois cartões em simultâneo no mesmo telemóvel", fotografia de celular com dois chips em tamanho aumentado
pleonasmo: dois chips no texto, dois chips na imagem
quadro de comercial, texto "coca-cola with love", imagem casal dividindo a mesma garrafa de coca-cola zero, cada um com um canudo, ela olha em seus olhos.
pleonasmo: coca-cola e amor no texto, garrafa de coca-cola e casal na imagem
anúncio publicitário. Texto "Think small". Foto de carro Fusca bem pequeno, com muito espaço vazio ao redor.
pleonasmo: “pense pequeno” no texto, carro pequeno na imagem

Outro modo de fortalecer uma mensagem é usar a hipérbole, o exagero, com o significado sendo visualizado de uma maneira que excede o padrão — estou morrendo de sede, esperei séculos por você. Uma criança levantando um caminhão para mostrar como o leite fortalece, cabelos arrepiados até o teto para mostrar que um susto foi grande. Em fotos de políticos, multidões ao seu redor, para mostrar sua popularidade.

anúncio publicitário Neutrox. Texto: "Arrepiou? Neutrox." Foto de mulher com expressão de susto e cabelos exageradamente arrepiados.
hipérbole: exagero no arrepio para valorizar a força do condicionador

No infográfico, na primeira página do jornal norte-americano The New York Times, onde colunas triangulares sobre o mapa dos Estados Unidos mostravam dados sobre mortes por covid-19 em diferentes cidades, e a coluna de Nova York sobe tão mais alto que as demais, que ultrapassa o logotipo e invade o cabeçalho do jornal, mostrando a dimensão gigante da calamidade na cidade (usar triângulos em vez de retângulos ajuda comunicar a agressividade dos dados, já que as pontas triangulares “rasgam” como a ponta de uma lança, de uma flecha).

Primeira página de jornal The New York Times. Infográfico com mapa dos Estados Unidos e colunas triangulas. Título:  "How the Coronavirus Toll Grew". Coluna com rótulo "New York 4.786 deaths" é muito mais alta que as demais e atravessa o cabeçalho do jornal.
hipérbole na visualização de dados

Uma maneira mais sutil de argumentar visualmente é através do contraste. Na antítese, temos a contraposição de sentidos contrários (dormindo acordado) e, no paradoxo, temos a contradição, que desafia o entendimento (pobre menino rico). Uma campanha de um site de vagas de emprego que mostra uma boneca bailarina presa em meio a jogadores de futebol de mesa e pergunta “Preso no trabalho errado?”. Uma foto de um político usando roupas caras enquanto come um pastel na feira. A foto de um jogador de futebol caído em campo com expressão triste enquanto um adversário comemora ao lado.

Anúncio publicitário Monster.com. Texto: "Stuck in the wrong job?". Foto de mesa de futebol de mesa com uma das peças substituída por uma bailarina.
antítese: contraste entre os movimentos livres da bailarina e presos das peças do futebol de mesa
Anúncio publicitário Getty Images. Texto: "Gety Images: The The best and the worst photos". Foto de criança segurando fuzil.
antítese: a agressividade da arma e a delicadeza da criança

O contraste é tradicionalmente usado no jornalismo, por exemplo, para explicitar o desequilíbrio de forças entre duas partes de um embate. A manifestante oferecendo uma flor aos soldados que apontam suas armas; o homem enfrentando sozinho os tanques na Praça da Paz Celestial; uma mulher sozinha carregando uma criança pequena e nua no colo, enquanto é empurrada por uma parede de militares com escudos na desocupação de um terreno em Manaus; outra mulher sozinha contra uma fila de policiais na desocupação de um assentamento judeu na Faixa de Gaza.

Foto em preto e branco. à esquerda, soldados apontam armas. À direita, mulher segura um flor, voltada para eles.
Protesto contra a guerra do Vietnã (1967), foto: Marc Riboud
Foto colorida. Em uma rua, fila de quatro tanques de guerra e um homem sozinho voltado para eles.
Protesto na Praça da Paz Celestial, China (1989), foto: Jeff Widener / Time
Foto colorida. Nove militares lado a lado cobertos pelos escudos que seguram empurram mulher que segura uma criança pequena no colo e tem expressão de medo.
Desocupação de terreno na Lagoa Azul em Manaus (2008), foto: Luiz Vasconcelos, Jornal A Crítica/Zuma Press
Foto colorida. à esquerda, massa de militares com rostos cobertos, todos voltados para a direita. Os primeiros seguram grandes escudos, que empurram mulher sozinha à direita, com expressão de esforço
Desocupação de assentamento judeu na Faixa de Gaza (2007), foto: Oded Balilty / AP

A prosopopeia, ou personificação, atribui sentidos racionais a algo irracional, ou seja, dá características humanas a objetos, animais ou situações — a cidade acordou, minha carteira chorou. É uma maneira de criar uma relação emocional ou facilitar uma compreensão a partir da identificação. Uma geladeira barriguda no anúncio do Veja Desengordurante, com a frase “Faça uma lipoaspiração na sua cozinha”, relaciona a gordura que se junta nas superfícies à gordura corporal. A ilustração de Christoph Niemann onde a escova e a pasta de dentes ganham braços e pernas para se abraçarem apaixonadamente retrata o ato da escovação de forma divertida. O infográfico de Nigel Holmes em que os próprios gráficos de colunas se deitam nos leitos hospitalares para informar gastos com saúde materializa o assunto para o público e facilita a compreensão e o engajamento.

Anúncio publicitário Veja Desengordurante. Texto: "Faça uma lipoaspiração na sua cozinha". Imagem: embalagem de Veja e geladeira deformada digitalmente para parecer obesa.
Prosopopeia: gordura na cozinha representada por uma geladeira obesa
Ilustração. Escova de dentes com cerdas que terminam em mãos e pés, abraçando pasta de dentre que também tem braços e pernas.
prosopopeia: característica humanas deixando a escovação mais divertida. Ilustração: Christoph Niemann
Infográfico. Título: "Medical care expenditures". Três gráficos de coluna, um vermelho, um verde e um amarelo. As colunas parecem estar deitadas em camas de hospital.
prosopopeia humanizando os dados sobre saúde. Criação: Nigel Holmes

Além destas figuras, há um caminhão de outras possibilidades (olha aí, eu usando uma figura), que aparecem e desaparecem das listas taxonômicas, de acordo com autores e épocas. Mas eu considero que as mais importantes, e talvez as mais usadas, sejam a metáfora e a metonímia. Sobre metáforas, há muito escrito, por exemplo, na área de design de interfaces. Na retórica da comunicação visual, recomendo os trabalhos do colega Ricardo Cunha Lima (2018, 2019), que tem um olhar importante para as metáforas visuais fora da publicidade, nos infográficos jornalísticos.

A metáfora é substituição de termos que têm sentidos diferentes, mas atribuindo a eles o mesmo sentido. Enquanto a analogia compara explicitamente (você é delicada como uma flor), a metáfora é mais sutil, usando o termo de referência diretamente (você é uma flor). Uma publicidade dos Alcóolicos Anônimos mostra o cume de uma montanha, onde se equilibra uma tábua, como uma gangorra, com uma pessoa em cada extremidade, e a frase “A gente não vai te ajudar, a gente vai se ajudar”. A ajuda mútua emocional presente no acompanhamento no AA é substituída visualmente pela gangorra, que também exige a participação igual de duas pessoas.

Anúncio publicitário Alcóolicos Anônimos. Texto: "A gente não vai te ajudar. A gente vai se ajudar". Ilustração de montanha com tábua equilibrada no cume, como uma gangorra, com uma pessoa de pé em cada extremidade.
metáfora: o processo é uma gangorra

Uma campanha de 1993 do Guaraná Antárctica fez sucesso ao estimular o consumo de salgadinho com guaraná mostrando um surfista saindo do mar segurando uma garrafa do refrigerante. O sal do mar na pele do jovem atraente substituía visualmente o alimento salgado, sugerindo que um é tão delicioso quanto o outro e os dois combinam com guaraná. Uma campanha antitabagista mostra cigarros no tambor de um revólver, substituindo as balas, para comunicar como fumar é tão mortífero quanto ser atingido pela arma.

Anúncio publicitário Guaraná Antarctica. Texto: "Salgadinho com guaraná". Foto: surfista saindo do mar com cabelo e corpo molhados, peito nu, carrega uma prancha com uma mão e uma garrafa de guaraná na outra.
metáfora: o surfista é apetitoso
Anúncio publicitário. Texto: "Smoking kills". Foto de revolver com tambor à mostra e cigarros no lugar das balas.
metáfora: cigarros são uma munição mortífera

Já a metonímia usa uma conexão temática — causa e efeito, parte pelo todo, instrumento e resultado, produtor e produto — para substituir um termo pelo outro: gosto de ler Machado de Assis, a coroa está ameaçada, meus braços precisam de você. Visualmente, utilizamos, por exemplo, o rosto de alguém para representar as suas ações, o seu legado ou o grupo ao qual pertence: a imagem de um político representando seu partido, um atleta representando seu time, um estetoscópio representando a prática da medicina. Uma lata de Coca-Cola representa todos os produtos da empresa, ou até mesmo a indústria de refrigerantes como um todo. Em pictogramas, este é recurso útil para comunicar de forma sintética, como a vaca que, em placas de trânsito, adverte a possibilidade da presença de animais de várias espécies na pista.

Anúncio publicitário Editora L&PM. Texto: "The greatest authors in your pocket." Imagem: Homem parecendo Nietzsche apertado no campo do anúncio. Capa de livro Ecce Homo, F. Nietzsche.
metonímia: o autor no lugar de sua obra
Anúncio publicitário MasterCard. Texto: "The 12th Annual Women's Golf Classic: priceless.". Imagem: Campo gramado de golf. Em primeiro plano, parte traseira de sapato de salto alto imitando um pino com bola de golf.
metonímia: o salto alto do sapato representando as mulheres
Anúncio publicitário do Hard Rock Café.  Imagem: garfo com dentes retorcidos imitando dedos da mãos fazendo um gesto com polegar segurando os dedos do meio enquanto os outros dois ficam levantados.
metonímia e prosopopeia: garfo representando o restaurante, gesto dando uma personalidade roqueira ao objeto (e, portanto, ao restaurante)

Mas a metonímia também é perigosa, quando entendida como uma generalização, como uma declaração de que aquela parte representa igualmente todas as partes de um todo. Na cobertura jornalística da crise de refugiados entre o oriente médio e a Europa, por exemplo, é possível observar como partes da mesma situação podem ser representadas de maneira diferente, depende do que é escolhido para funcionar como metonímia quando comunicamos. As fotos do cadáver de uma criança síria sendo encontrado em uma praia da Turquia chocou o mundo, representando a tragédia humanitária. Já as fotos de jovens sírios desembarcando na Grécia, sorrindo, tirando selfies e comemorando a chegada vieram com o questionamento “Estes jovens felizes são realmente almas fugindo de guerra e perseguição?”. A luta dos imigrantes precisa sempre acabar mal, para que seja real? Isso mostra como a seleção da parte da história que usamos para representar o todo é crucial para construir nosso argumento.

Captura de tela de site de notícias. Título: "Shocking images of drowned Syrian boy show tragic plight of refugees". Foto: praia, policial carrega corpo de criança pequena."
Captura de tela de site de notícias. Título: "Migrant crisis: Are these happy young men really timid souls fleeing war and persecution?". Foto: mar ao fundo, céu azul. Grupo de homens jovens sorridentes posa para foto mostrando os dedos em V, enquanto um deles tira uma selfie do grupo com um celular em um pau de selfie.

Referências

BONSIEPE, G. Retórica Visual/Verbal. In: BIERUT, M., et al. Textos clássicos do design gráfico. São Paulo: Martins Fontes, 2010 [1965]. p. 177-183.

DURAND, J. Rhétorique et image publicitaire. Communications, n. 15, p. 70-95, 1970.

EHSES, H.; LUPTON, E. Rhetorical Handbook: An Illustrated Manual for Graphic Designer. Design Papers 5, Halifax, 1988.

LIMA, R. C. A metáfora visual e o enquadramento na infografia: o enfoque nos gráficos estatísticos. Tese de doutorado: Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2018.

LIMA, R. C. Metáforas e gráficos pictórico-esquemáticos de Nigel Holmes. Anais do 9º Congresso Internacional de Design da Informação | CIDI 2019. Belo Horizonte: Sociedade Brasileira de Design da Informação – SBDI. 2019. p. 222-236.

PHILIPS, B. J.; MCQUARRIE, E. F. Beyond visual metaphor: A new typology of visual rhetoric in advertising. Marketing Theory, v. 4, n. 1/2, p. 113-136, 2004.